quarta-feira, 10 de maio de 2023

Minha homenagem a Santa Rita de Sampa

Ano passado, publiquei com o amigo Leo Cunha o livro de crônicas O ROCK MANDA LEMBRANÇAS. E uma das crônicas era homenagem à querida Tia Rita, que acaba de virar semente e de nos deixar dizendo que cansou de lero-lero e dando "Alô alô" aos marcianos...

Com licença do parceiro Leo e da editora Cecília, gostaria de postar aqui um trecho dessa crônica, num tom de OBRIGADA LITA REE, por ter sido a incrível mulher que foi e abrir tantos caminhos pra todas nós, ovelhas negras e portadoras de MENOPOWER!

O resto da crônica e outras escrituras roqueiras doidas estão no livro:


As pessoas na sala de jantar

Hippies, mutantes, alienígenas e trilhas sonoras (São Paulo, de 1965 a 2017 e além)

Rosana Rios


Lá pelos idos de 1965, nos bairros vizinhos de Pompeia e Perdizes (zona oeste paulistana), havia uma banda em cada esquina. Aos domingos, qualquer um que andasse sem rumo pelas ruas ouviria sons exemplificando todas as tendências roqueiras da época, vindos de garagens, esquinas ou quartinhos de fundo em casas de avós. O rock era a trilha sonora dos fins de semana por ali, e quase todo mundo que botava as mãos num instrumento de corda dedilhava sucessos dos Ventures ou esganiçava (mesmo sem saber inglês) o último lançamento dos Beatles.

Foi nesse cenário que, certa tarde, três adolescentes típicos da fauna local (a maioria ali era aluno do colégio Perdizes) encontravam-se sentados em um murinho na rua Ministro Godoy. Cantarolavam algum rock embalados pelas cordas que um deles tangia. O rapaz tinha seus 16 anos e havia herdado da família, em terceira ou quarta mão, um violão meio detonado ao qual bela rachadura conferia um timbre peculiar. E bem naquela hora passou pela rua certo grupo de estudantes de outro colégio, o Batista, já conhecidos no pedaço.

Papo vai, papo vem, um dos passantes pediu para experimentar o violão rachado. Conhecido na zona oeste como Serginho, ele fazia parte de uma banda da Pompeia criada com seus irmãos e que contava com uma vocalista bonitinha que vinha da Vila Mariana. Apresentando-se sob vários nomes bizarros, eles tocavam rock no Batista e em festinhas locais; sabiam inglês e acertavam as letras das canções dos Beatles, o que era uma façanha na época, coisa de doido ou talvez de alienígena.

Com a prática adquirida nas festinhas, o sujeito era um virtuose da guitarra. Tocou um solo maluco e que parecia impossível de se extrair de tal instrumento acústico… Depois despediu-se do dono e foi embora com sua turma, elogiando a sonoridade do violão rachado.

No ano seguinte, 1966, o grupo de que o tal Serginho fazia parte apresentou-se num programa de TV e dele saiu rebatizado. Os nomes bizarros do conjunto que já fora O’Seis e Os Bruxos seriam substituídos pelo psicodélico Os Mutantes. Fosse pela mutação ou não, após a mudança eles sairiam da Pompeia para o mundo: Serginho, seu irmão Arnaldo e a namorada Rita seriam, logo, logo, considerados figuras pioneiras no cenário incipiente do rock nacional.

Meses se passaram e chegou 1968. Em outro bairro da zona oeste paulistana, Pinheiros, vizinho de Perdizes, uma garota pré-adolescente assistia TV: acompanhava fielmente as apresentações semanais de um certo Terceiro Festival da Música Popular Brasileira. Na telinha em preto e branco, que às vezes parecia um mostruário de manchas e listras, viu surgir um jovem compositor baiano. Ele começou a interpretar sua canção acompanhado por dois rapazes magrelos e uma garota de cabelos escorridos que tinha um coraçãozinho desenhado no rosto. Empolgada com o som maluco, que misturava baião, música clássica e rock, a menina passou a torcer por eles. E aplaudiu quando a canção “Domingo no Parque”, de Gil com backing vocal dos Mutantes, foi a segunda colocada no Festival. Depois disso, passou a acompanhar via rádio e TV a carreira daqueles doidos (Serginho e Arnaldo) e da garota (ela era namorada de qual dos dois, afinal?).

Muitas vezes aquela pré-adolescente pintou coraçõezinhos no rosto e usou coroas de flores, imitando o que vira na TV. Hippie? Psicodélica? Nem tanto. Só fã da Rita Lee.

O Brasil fervia em 1968, quando o primeiro LP dos três caiu-lhe em mãos. Foi por cortesia de um tio (que amava os Beatles e os Rolling Stones e comprava muitos vinis) que ela ouviu o disco “Os Mutantes” e decorou a letra de sua faixa preferida, “Panis et circencis” (autoria de Gil e Caetano) e que era cheia de metáforas. Passaria os anos seguintes cantando sobre as pessoas na sala de jantar, que desde aqueles tempos estavam empenhadas em serem sempre as mesmas irritantes pessoas na sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer

Metáforas e mutações à parte, em 1977 o dono do violão rachado e a adolescente que pintava coraçõezinhos no rosto (e que haviam se conhecido nos corredores da faculdade de Belas Artes) decidiram morar juntos para reunir os vinis que ouviam. Casaram-se de papel passado mas sem grana nem alianças…

(...) Cunha, Leo e Rios, Rosana. O ROCK MANDA LEMBRANÇAS. Elo Editora, 2022. Pp. 34-36.