O feriado de hoje comemora a Consciência Negra. E eu sempre reflito que, com esta pele branca que me obriga a usar filtro solar cada vez que boto o pé na rua, sempre me espanta ver fotos dos meus avós e bisavós. É óbvio, ao ver certos traços físicos nos retratos dos parentes que já se foram, que no meu DNA tem genes africanos; disso não tenho a menor dúvida.
Será que vem daí meu fascínio pela Mãe África? Ou será que é apenas empatia, que vem das tantas leituras que se empilham na bagagem interior da minha alma? Não sei. Mas, de um jeito ou de outro, esse fascínio por tudo que é africano aparece em vários dos meus livros, e se tornou óbvio neste que é o mais recente: "Iluminuras", publicado pela Lê Editora.
Então, para comemorar este 20 de Novembro de 2015, em que se pensa na Negritude e se tenta extirpar velhos preconceitos, deixo para degustação dos leitores um trecho do livro.
O esconderijo nos arredores da
Vila, uma vala entre arbustos, não era profundo, mas foi suficiente
para que os quilombolas ocultos vissem os cavalarianos passarem rumo
à encruzilhada. Os olhos espertos de Rahim divisaram um dos
tropeiros orientando os soldados.
– Agora? – ele perguntou ao
líder, assim que os soldados sumiram.
– Logo – respondeu Akin,
ocupado em tirar faíscas da pederneira.
Como calculara, os tropeiros
haviam dado o alerta sobre o assalto ao chegarem à Vila, no dia
anterior, mas a resposta dos fidalgos fora lenta. Só um dia depois o
Capitão-mor enviara cavalarianos em busca dos quilombolas e da carga
roubada. Só encontrariam rastros: quando chegassem ao rio, os
fugitivos já estariam no quilombo com os mantimentos e animais.
Nesse meio tempo, a Vila
ficaria pouco guardada.
O Ayo saiu da vala e ordenou o
ataque. Os homens o seguiram em silêncio, agora armados com os
arcabuzes roubados – embora alguns, como Rahim, preferissem facões
e lanças.
Akin podia ver nos olhos do
Hauçá o gosto pela guerra, que ele não compartilhava. Já vira
sangue demais, morte demais... Tornou a acionar a pederneira e
acendeu algumas tochas. Quando os primeiros moradores os avistaram,
gritou, incitando os quilombolas a atacar.
Aos berros, espalharam-se pelas
ruas de terra no rumo da igreja matriz, tocando fogo em telhados de
palha seca e derrubando os homens que lhes aparecessem à frente.
A confusão foi total. Como
esperavam, a surpresa atrasou a resposta dos cavalarianos e deu tempo
aos atacantes para fazerem um bom estrago. Quando os soldados
apareceram para combatê-los, Akin havia deixado Rahim no comando dos
homens e se esgueirado para um casarão que era seu verdadeiro
objetivo.
Saltou com facilidade a cerca
viva nos fundos e se escondeu atrás de um galinheiro. Ouvindo as
vozes de fidalgos, criados e agregados da casa nas salas da frente,
ecoando a comoção que tomava a Vila, seguiu para um pequeno anexo à
grande cozinha.
– Quem é? – a voz fraca,
feminina, veio da escuridão do cômodo sem janelas.
– Sou
eu, Iyá
–
ele
andou no escuro em direção à voz.
Acostumando o olhar às trevas,
Akin divisou, no fundo do quartinho, o rosto da mulher. Parecia muito
mais velha que quando a vira pela última vez, na fazenda nas Geraes,
antes da fuga; custara a descobrir onde vivia, agora. O rosto
enrugado sorriu e os olhos cegos brilharam.
– És
tu, omadê.
António. Sabia que ias voltar.
Ele se aproximou com
reverência. Tomou as mãos da idosa escrava nas suas.
– Vim
por ela, Iyá.
Tua neta não vive lá nem cá, pelo que sei. Onde vou achar Oluremi?
Um suspiro veio do peito fraco
da cega.
– Ah,
omadê,
tu sabes que não somos nada nas mãos do branco. Esquece dela.
Minhas duas netas vieram com a mudança para o sul, mas não
quentaram
lugar. Sinhá tem muito escravo aqui, deu Iraê e Oluremi de presente
para parenta importante dela.
O ódio ressoou no peito de
Akin. Já vira muitas vezes os cativos serem tratados como animais,
mas pensar em sua linda Oluremi sendo presenteada como um objeto fez
a raiva lhe transbordar dos olhos. Para onde a teriam levado, agora?
– Como chama a parenta, onde
vive? Vou atrás.
– Tu
vais atrás é de Iku
–
retrucou ela. –
Da
morte.
*