sábado, 21 de março de 2020

Um conto: DEPOIS DA QUARENTENA


TEIAS
(Depois da Quarentena)

Rosana Rios

Quando foi divulgado – por meios eletrônicos e radiofônicos, já que os televisivos haviam saído do ar fazia tempo – que o último portador do vírus havia sarado, ainda ficamos dias sem sair de casa. Ninguém acreditava que era seguro quebrar a quarentena, depois de tanto tempo torrando os miolos para distinguir quais notícias eram falsas e quais não eram…
Quanto tempo durara o isolamento? Não sabíamos mais. Depois de alguns meses, todas as pessoas, num comum e não-verbal acordo, deixaram de computar os dias e as semanas. Havia as manhãs, as tardes, as noites; havia os tempos de calor, os tempos de frio. E só.
Contudo, logo começaram a aparecer nas teias de comunicação fotos e vídeos de pessoas andando pelas ruas antes desertas. Caminhavam vagarosamente entre o mato que crescera, ao som dos piados e do canto de aves que voavam, livres, num céu sem poluição. Havia ainda relatos de rosnados de animais de pequeno porte que caçavam, sem temer os predadores de duas pernas.
E, após a queda dos governos autoritaristas, quem se comunicava em nome dos poderes recém-constituídos eram pessoas bem mais confiáveis e esclarecidas. O que diziam fazia sentido… E era melhor que fizesse, porque todos agora sabia que, se tínhamos derrubado os incompetentes anteriores, nada nos impediria de derrubar os atuais também. A teia de poder havia se transformado.
Lá em casa, tomamos coragem, olhamos uns para os outros – já nos entendíamos apenas pelo pensamento, depois do longo confinamento – e decidimos:
– Vamos sair.
*
A rua e as casas não pareciam muito diferentes do que haviam sido antes da pandemia; só que agora estavam quase submersas por plantas, arbustos, árvores. O verde brotara de cada pequena rachadura, cada brecha nas calçadas, cada buraco no asfalto. Era como se tivéssemos nos trancado em casa numa metrópole e saíssemos agora numa floresta.
Vimos, a alguma distância, outros moradores do bairro que também andavam pelas ruas. Todos ainda usavam máscaras, botas, luvas protetoras.
Cautelosos e inseguros. Mas, como nós, vivos.
Sobreviventes.
Foi ao dar os primeiros passos que percebemos a novidade não-vegetal.
No chão, nos cantos de paredes, nos telhados, troncos de árvores e galhos de arbustos, algo tremulava com o vento de outono. Coisas estranhas, cinzentas, finas…
Cheguei perto de uma daquelas coisas para examinar melhor.
Era uma teia.
Teia de aranha… Não se podia ver a tecedeira, oculta sob camadas e camadas de um tecido semi-invisível, que enganava os olhos humanos mas fazia-se presente, apesar de tênue.
Algo efêmero e frágil demais para ter sobrevivido.
Não quis tocar aquilo com as mãos enluvadas. O tempo de recolhimento me tornara enlouquecedoramente cautelosa e insegura. Apenas indiquei aos outros o que descobrira.
– Não é só aqui. Elas estão em toda parte! – disse alguém.
Olhamos para cima e vimos, entre os postes de eletricidade e os cabos, os galhos de árvores e os cipós (de onde vinham tantos cipós?!) o enorme, imenso, grandioso emaranhado de teias aracnídeas. Fragilidade? Nenhuma.
Depois da quarentena, as teias e suas habitantes pareciam ser muito, muito poderosas!
Fotografamos algumas e filmamos as que se movimentavam sem sopro de vento, atestando a presença de octópodes tecedores balançando-se lá por dentro. Algumas vezes víamos um olho, uma quelícera, um abdome volumoso apoiado num leito de teias.
Deu medo. Voltamos para casa.
E, sem perder tempo, acionamos todos os dispositivos para postar as fotos e vídeos recolhidos naquela breve excursão ao mundo lá fora…
Não éramos os únicos. Em toda parte, em cada casa, rua, cidade, país, os sobreviventes encontravam não apenas as pequenas espécies animais locupletando-se na ausência de humanos.
Encontravam teias. Teias e mais teias.
Habitadas.
Logo descobriu-se que, graças às teias e às aranhas, suas mestras – que em pouco tempo começam a ser detectadas, fotografadas e analisadas pelos especialistas de plantão – não restavam nas cidades e campos nem sinal dos mosquitos, pernilongos e outros insetos transmissores de doenças. E mais: não se via uma só barata, em lugar nenhum! Formigas ainda havia, mas poucas e bem tímidas: seu número diminuíra consideravelmente.
Graças às aranhas? Bem provável. A hipótese mais corrente era de que nossas amigas octópodes haviam sofrido mutações.
Após a quarentena, agora tínhamos aranhas mutantes…
Passados três dias, não resisti e saí de novo para examinar as teias que, em toda parte, só apareciam nas regiões externas. Dentro das casas, dos quintais e dos apartamentos elas não se manifestavam. Por quê? Ninguém sabia.
Na rua, criei coragem e, sempre com luvas, toquei em um longo fio bem próximo ao meu portão. Ele se soltou e se desfez no ar, com a brisa. Era apenas um fiozinho bem fraco.
Imaginei que, naquela hora, muitos humanos estariam, como eu, mexendo neles – talvez tentando limpar suas ruas e para eliminar as tramas aracnídeas.
Mas, quando olhei de novo para o portão, gelei.
O fio que eu eliminara acabava de ser reposto: e agora eram dois. Maiores e mais fortes! Do fundo do emaranhado, olhinhos brilharam. Recuei um passo. A aranha recuou também. Concluí que, se eu a respeitava, ela me respeitava também. Porém, se eu cismasse em atacá-la…
Voltei para casa e corri para os dispositivos. Uma intuição me tomara e já sabia o que devíamos fazer. Mas será que todas as pessoas aceitariam minha ideia?
Durante o tempo em que ficamos de quarentena, as aranhas se tornaram senhoras absolutas do mundo… Ao menos enquanto os humanos não saíssem das tocas. E elas não seriam derrotadas: teríamos, agora, de conviver com elas. Deixar suas teias mutantes em paz.
Afinal, elas provavelmente acabaram com várias das pragas causadoras de doenças.
Precisávamos tomá-las por aliadas, não por inimigas!
*
A comunicação está feita. Muita gente, ao redor do mundo, discute o assunto – e vai chegar às mesmas conclusões que eu. Outros, menos tolerantes ou mais medrosos – ainda há gente arrogante, apesar de tudo por que passamos – tentarão atacá-las. O que isso causará?
Não sei. Não sabemos.
Ainda.
Mas, depois da quarentena, o mundo é outro. E, se as pessoas também não se tornarem outras, se não forem mutantes – seguindo o exemplo das aranhas – talvez nos espere um destino pior do que o que já sofremos com a pandemia.
De minha parte, deixo as teias em paz.
E começo a gostar cada vez mais delas.
Irmãs aranhas!
***


domingo, 8 de março de 2020

Mais um Premio da Cátedra UNESCO de Leitura!

Dia 06 de março de 2020 estive na PUC-RJ para receber o prêmio Seleção conferido pela Cátedra Unesco de Leitura, resultado das pesquisas do GELIJ (Grupo de EStudos de Literatura Infantil e Juvenil) e do IILER (Instituto Interdisciplinar de Leitura da PUC).
Já recebi esse prêmio 3 vezes!
Este ano foi o selo Seleção pela obra "Manajaléu e outras histórias do Folclore", publicado pela Ed. Escrita Fina:
Ano passado (2018)  recebi também o selo Seleção pela obra "Tinha um livro no meio do caminho", minhas crônicas autobiográficas publicadas pela Ed. do Brasil:
E no ano anterior (2017) recebi o selo Distinção, pelo livro infantil "Foi ele que escreveu a ventania", publicado pela Ed. Pulo do Gato:
É sempre uma alegria estar no Rio e encontrar a equipe do GELIJ, pessoas incríveis que fazem um belíssimo trabalho de análise da Literatura feita para crianças e jovens no Brasil!