TEIAS
(Depois
da Quarentena)
Rosana
Rios
Quando
foi divulgado – por meios eletrônicos e radiofônicos, já que os
televisivos haviam saído do ar fazia tempo – que o último
portador do vírus havia sarado, ainda ficamos dias sem sair de casa.
Ninguém acreditava que era seguro quebrar a quarentena, depois
de tanto tempo torrando os miolos para distinguir quais notícias
eram falsas e quais não eram…
Quanto
tempo durara o isolamento? Não sabíamos mais. Depois de alguns
meses, todas as pessoas, num comum e não-verbal acordo, deixaram de
computar os dias e as semanas. Havia as manhãs, as tardes, as
noites; havia os tempos de calor, os tempos de frio. E só.
Contudo,
logo começaram a aparecer nas teias de comunicação fotos e vídeos
de pessoas andando pelas ruas antes desertas. Caminhavam
vagarosamente entre o mato que crescera, ao som dos piados e do canto
de aves que voavam, livres, num céu sem poluição. Havia ainda
relatos de rosnados de animais de pequeno porte que caçavam, sem
temer os predadores de duas pernas.
E,
após a queda dos governos autoritaristas, quem se comunicava em nome
dos poderes recém-constituídos eram pessoas bem mais confiáveis e
esclarecidas. O que diziam fazia sentido… E era melhor que fizesse,
porque todos agora sabia que, se tínhamos derrubado os incompetentes
anteriores, nada nos impediria de derrubar os atuais também. A teia
de poder havia se transformado.
Lá
em casa, tomamos coragem, olhamos uns para os outros – já nos
entendíamos apenas pelo pensamento, depois do longo confinamento –
e decidimos:
–
Vamos sair.
*
A
rua e as casas não pareciam muito diferentes do que haviam sido
antes da pandemia; só que agora estavam quase submersas por plantas,
arbustos, árvores. O verde brotara de cada pequena rachadura, cada
brecha nas calçadas, cada buraco no asfalto. Era como se tivéssemos
nos trancado em casa numa metrópole e saíssemos agora numa
floresta.
Vimos,
a alguma distância, outros moradores do bairro que também andavam
pelas ruas. Todos ainda usavam máscaras, botas, luvas protetoras.
Cautelosos
e inseguros. Mas, como nós, vivos.
Sobreviventes.
Foi
ao dar os primeiros passos que percebemos a novidade não-vegetal.
No
chão, nos cantos de paredes, nos telhados, troncos de árvores e
galhos de arbustos, algo tremulava com o vento de outono. Coisas
estranhas, cinzentas, finas…
Cheguei
perto de uma daquelas coisas para examinar melhor.
Era
uma teia.
Teia
de aranha… Não se podia ver a tecedeira, oculta sob camadas e
camadas de um tecido semi-invisível, que enganava os olhos humanos
mas fazia-se presente, apesar de tênue.
Algo
efêmero e frágil demais para ter sobrevivido.
Não
quis tocar aquilo com as mãos enluvadas. O tempo de recolhimento me
tornara enlouquecedoramente cautelosa e insegura. Apenas indiquei aos
outros o que descobrira.
–
Não é só aqui. Elas estão em toda parte! – disse alguém.
Olhamos
para cima e vimos, entre os postes de eletricidade e os cabos, os
galhos de árvores e os cipós (de onde vinham tantos cipós?!) o
enorme, imenso, grandioso emaranhado de teias aracnídeas.
Fragilidade? Nenhuma.
Depois
da quarentena, as teias e suas habitantes pareciam ser muito, muito
poderosas!
Fotografamos
algumas e filmamos as que se movimentavam sem sopro de vento,
atestando a presença de octópodes tecedores balançando-se lá por
dentro. Algumas vezes víamos um olho, uma quelícera, um abdome
volumoso apoiado num leito de teias.
Deu
medo. Voltamos para casa.
E,
sem perder tempo, acionamos todos os dispositivos para postar as
fotos e vídeos recolhidos naquela breve excursão ao mundo lá fora…
Não
éramos os únicos. Em toda parte, em cada casa, rua, cidade, país, os
sobreviventes encontravam não apenas as pequenas espécies animais
locupletando-se na ausência de humanos.
Encontravam
teias. Teias e mais teias.
Habitadas.
Logo
descobriu-se que, graças às teias e às aranhas, suas mestras –
que em pouco tempo começam a ser detectadas, fotografadas e
analisadas pelos especialistas de plantão – não restavam nas
cidades e campos nem sinal dos mosquitos, pernilongos e outros
insetos transmissores de doenças. E mais: não se via uma só
barata, em lugar nenhum! Formigas ainda havia, mas poucas e bem
tímidas: seu número diminuíra consideravelmente.
Graças
às aranhas? Bem provável. A hipótese mais corrente era de que
nossas amigas octópodes haviam sofrido mutações.
Após
a quarentena, agora tínhamos aranhas mutantes…
Passados
três dias, não resisti e saí de novo para examinar as teias que,
em toda parte, só apareciam nas regiões externas. Dentro das casas,
dos quintais e dos apartamentos elas não se manifestavam. Por quê?
Ninguém sabia.
Na
rua, criei coragem e, sempre com luvas, toquei em um longo fio bem
próximo ao meu portão. Ele se soltou e se desfez no ar, com a
brisa. Era apenas um fiozinho bem fraco.
Imaginei
que, naquela hora, muitos humanos estariam, como eu, mexendo neles –
talvez tentando limpar suas ruas e para eliminar as tramas aracnídeas.
Mas,
quando olhei de novo para o portão, gelei.
O
fio que eu eliminara acabava de ser reposto: e agora eram dois.
Maiores e mais fortes! Do fundo do emaranhado, olhinhos brilharam.
Recuei um passo. A aranha recuou também. Concluí que, se eu a
respeitava, ela me respeitava também. Porém, se eu cismasse em
atacá-la…
Voltei
para casa e corri para os dispositivos. Uma intuição me tomara e já
sabia o que devíamos fazer. Mas será que todas as pessoas
aceitariam minha ideia?
Durante
o tempo em que ficamos de quarentena, as aranhas se tornaram senhoras
absolutas do mundo… Ao menos enquanto os humanos não saíssem das
tocas. E elas não seriam derrotadas: teríamos, agora, de conviver
com elas. Deixar suas teias mutantes em paz.
Afinal,
elas provavelmente acabaram com várias das pragas causadoras de
doenças.
Precisávamos
tomá-las por aliadas, não por inimigas!
*
A
comunicação está feita. Muita gente, ao redor do mundo, discute o
assunto – e vai chegar às mesmas conclusões que eu. Outros, menos
tolerantes ou mais medrosos – ainda há gente arrogante, apesar de
tudo por que passamos – tentarão atacá-las. O que isso
causará?
Não
sei. Não sabemos.
Ainda.
Mas,
depois da quarentena, o mundo é outro. E, se as pessoas também não
se tornarem outras, se não forem mutantes – seguindo o exemplo das
aranhas – talvez nos espere um destino pior do que o que já
sofremos com a pandemia.
De
minha parte, deixo as teias em paz.
E
começo a gostar cada vez mais delas.
Irmãs
aranhas!
***