quinta-feira, 3 de abril de 2008

Neil Gaiman: “Neverwhere”

Chama-se Lugar nenhum este livro do autor inglês Neil Gaiman, publicado pela editora Conrad, com tradução de Juliana Lemos . Como sempre, li em poucos dias (para não dizer que devorei), porque quando a gente abre uma história de Gaiman não consegue fechar o livro... Esta não é considerada uma das mais importantes obras do autor, mas tem todas as saborosas características da literatura desse inglês excêntrico que se popularizou como roteirista de quadrinhos, e que passeia pelos mundos de fantasia com tanta segurança quanto a que tem Sandman, o senhor dos sonhos, ao passear por seus domínios oníricos.

Neverwhere (Lugar nenhum) conta a história de Richard Mayhew, um rapaz bastante comum, que mora num apartamento alugado em Londres, tem um emprego burocrático e namora Jessica, moça elegante e intelectual. Até o dia em que socorre uma garota suja caída na rua, e de repente se vê envolvido numa aventura complicada em uma outra Londres, que fica sob a normal - e que abriga criaturas bizarras, improváveis, cruéis, patéticas. É lá, nesse lugar nenhum, limbo em que a existência fica suspensa e nada é o que parece, que a vida dele mudará radicalmente, e a garota, chamada Door, o fará transformar-se de um jovem inseguro num guerreiro capaz de sobreviver em ambiente hostil, entre intrigas e alianças políticas, confrontos sangrentos e traições pungentes.

Ler esse livro é um prazer imenso, pela fluência da narrativa, pelas referências intertextuais e pela empatia com as personagens; e o prazer se torna indizível para quem conhece Londres. As ruas da cidade, as praças e estações de metrô de repente têm seus nomes transformados em personagens; daí surgem trocadilhos ricos, saborosos e que provocam na gente aquele meio-sorriso de quem sabe que poucas pessoas entenderiam do quê a gente está rindo – sendo Neil Gaiman uma delas.

Essa cumplicidade autor-leitor é uma das forças de Gaiman. Como em outros de seus livros, Stardust, Deuses Americanos (American Gods) e Os Filhos de Anansi (Anansi Boys), Neverwhere apresenta um protagonista que desejaria apenas ser um sujeito comum e cuidar da sua vida, mas que pela força das circunstâncias é jogado em um universo ao avesso, fantástico, mirabolante, em que as regras são outras e a crueldade cai sobre os invasores com uma inevitabilidade dolorosa. Existem ecos dos outros heróis improváveis de Gaiman em Richard : Tristran Thorn, o garoto que só desejava encontrar uma estrela cadente e que acaba penetrando no reino de Faerie; Shadow, o ex-presidiário que só queria reencontrar a esposa mas que se envolve numa guerra implacável entre deuses de mitologias passadas e deuses do mundo globalizado; Fat Charlie, que só queria se ver livre da lembrança de seu bizarro pai, mas que descobre ser na verdade descendente de um deus ancestral e irremediavelmente ligado a um irmão estranho... Gaiman trata da perplexidade do homem comum (que, contudo, não era tão comum quanto acreditava ser) diante do inevitável, e das escolhas difíceis que tem de fazer. Esse é o elemento recorrente de todas essas obras. E é aquilo que nos agarra pela goela e não nos deixa fechar o livro enquanto a ficção não revela seus segredos ao leitor.

E que venham mais segredos e mais obras desse inglês doido, endoidecedor e senhor dos sonhos!